Economia circular ganha força na Amazônia com aproveitamento do caroço do açaí e de resíduos têxteis
- Mayra Leal
- há 5 horas
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O modelo de produção e consumo é um alinhamento da produção industrial às metas globais de sustentabilidade. Conheça melhor um dos pilares da Jornada COP+

Fruto sagrado no Pará, o açaí é fonte de alimentação e renda para milhares de paraenses. Depois de retirado do açaizeiro, ele é batido com água e vira um dos alimentos mais consumidos no estado e essencial para a segurança alimentar. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o Pará produz mais de 93% do açaí do Brasil. A produção estadual é de quase 1 milhão e 700 mil toneladas por ano. Mas neste processo, apenas 20% do fruto é aproveitado. O caroço - que corresponde a 80% da massa do açaí - é descartado, muitas vezes, de forma irregular. Mas algumas iniciativas apostam no reaproveitamento desse resíduo dentro do modelo de Economia Circular.
Em Primavera, município que fica a 200 quilômetros de Belém, o caroço do açaí vira combustível para a fabricação de cimento na fábrica da Votorantim Cimentos. A utilização é feita por meio de co-processamento, que consiste na troca de combustíveis fósseis por resíduos industriais, urbanos e biomassa. O resíduo substitui uma parte relevante do coque de petróleo, combustível fóssil importado dos Estados Unidos. O açaí usado vem da cidade de Igarapé-Miri, que fica a 300 km da fábrica, e é conhecida como a capital mundial do açaí. Os produtores recolhem e separam os caroços que são descartados, secados, armazenados e depois transportados até Primavera.
De acordo com Álvaro Lorenz, diretor global de Sustentabilidade, Relações Institucionais, Desenvolvimento de Produto e Engenharia da Votorantim Cimentos, a estratégia gera benefícios ambientais, sociais e econômicos. “Com o uso dessa biomassa, a empresa contribui para o descarte adequado dos caroços de açaí no meio ambiente, o que aumenta a vida útil dos aterros e evita a poluição do meio ambiente, usando uma fonte sustentável de energia, emitindo menos CO2 por tonelada de cimento produzida. A parceria com produtores locais de açaí é essencial para o sucesso da economia circular, pois conecta os atores locais à cadeia de produção sustentável. Ao redirecionar esse resíduo para uso industrial, evita-se o descarte inadequado, reduzindo a poluição e gerando uma fonte de renda adicional para a comunidade local”, explica.

Em 2024, a empresa co-processou mais de 60 mil toneladas de caroço de açaí na fábrica da Votorantim Cimentos em Primavera. A unidade também utiliza outras biomassas na substituição do combustível, como o cavaco de madeira (madeira triturada), briquete de serragem (blocos compactados) e pó de serra. No ano passado, 64,3% do combustível utilizado na fábrica de Primavera foi de origem alternativa, como resíduos e biomassas.
Segundo o diretor, a empresa utiliza a tecnologia de forma pioneira desde 1991. Hoje, as 15 fábricas de cimento espalhadas pelo Brasil fazem o co-processamento. “Entendemos que somos parte da solução para descarbonização do planeta. A prática também está diretamente conectada às nossas metas estabelecidas nos compromissos de sustentabilidade para 2030, que têm na economia circular um dos pilares estratégicos para enfrentar os desafios das mudanças climáticas e contribuir para a construção de um futuro mais sustentável”, explica Álvaro.
O que é a economia circular e qual o seu potencial?
Há séculos, o modelo de economia repete os mesmos passos, de forma linear: extrair, produzir, consumir, usar e descartar. Na busca por alternativas de menor impacto ao meio ambiente, surgiu a Economia Circular, que propõe novos jeitos de se relacionar com os recursos, a partir da valorização de processos como a reciclagem e a reutilização, a redução da quantidade de resíduos produzidos diariamente e a criação de metodologias que visem regenerar o que já foi impactado negativamente ou perdido. Esses objetivos estão ligados a práticas que formam os 7 Rs da economia circular: recusar, repensar, reduzir, reutilizar, reparar, reciclar e regenerar.
Um levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e do Centro de Pesquisa em Economia Circular da Universidade de São Paulo (USP) divulgado em 2024, mostra que 85% das indústrias do país adotam alguma prática de economia circular em sua cadeia de produção. No setor, as iniciativas mais praticadas são a promoção de programas de sustentabilidade ou a realização de práticas que aumentam a efetividade dos processos. Já uma prática mais comum, como a reciclagem, é adotada em três a cada dez empresas.
Dados da ONU mostram que a Economia Circular poderia gerar um ganho de 108 bilhões de dólares para a economia global até 2050, através da redução e gestão eficaz de resíduos e outras práticas sustentáveis. No Brasil, segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, investimentos em economia circular podem gerar 7 milhões de empregos até 2030.
Vinicius Saraceni, integrante do comitê de Economia Circular da Jornada COP+ e diretor geral do Movimento Circular, explica que o modelo econômico linear já trouxe várias consequências para o planeta e a Economia Circular seria uma alternativa para minimizar estes impactos. “Mudanças climáticas, perda de biodiversidade, poluição, desigualdade, entre outras questões. O contexto é de uma policrise que atinge diversas áreas ao mesmo tempo. A economia circular surge como um jeito mais inteligente e responsável de viver. Ela nos convida a repensar tudo: desde como um produto é criado até o que acontece com ele depois que a gente não precisa mais dele. É transformar o lixo em recurso, o fim em recomeço. É desenhar sistemas onde os resíduos viram matéria-prima e nada se perde”, destaca.

O Movimento Circular existe há cinco anos com o propósito de educar e interligar os elos da cadeia aos conceitos e práticas da circularidade. Hoje, conta com uma rede crescente de mais de 70 parceiros, como Dow; Valgroup; Sabesp; 3M; Scania; Mars e Magazine Luiza. O movimento atua desde a promoção da educação para a circularidade em escolas públicas até articulações com grandes empresas e governos, criando conteúdos, cursos, formando multiplicadores e promovendo eventos para que mais pessoas possam se envolver e fazer parte da construção de sociedades mais circulares. “Para isso virar realidade, a sociedade tem um papel central. Porque a circularidade não é só sobre grandes soluções tecnológicas, industriais e/ou governamentais — é também sobre pequenas escolhas diárias. Separar o lixo, consertar ao invés de jogar fora, consumir de forma mais consciente, apoiar marcas e iniciativas socioambientalmente responsáveis”, explica Saraceni.
Para o Movimento, no contexto amazônico, a bioeconomia é uma das formas mais potentes de garantir desenvolvimento sustentável. “Parcerias entre comunidades, centros urbanos, governos, ongs e indústrias devem ter como meta o desenvolvimento sustentável da região. E para isso, a floresta precisa estar de pé — e os saberes tradicionais representados. Sem essas comunidades como protagonistas, a economia circular na Amazônia não será possível. Esses povos já praticam a circularidade de forma natural e sustentável há milênios. A integração dessas práticas ao conhecimento científico, à produção industrial e ao desenvolvimento sustentável das zonas urbanas é também chave para avançarmos de maneira mais eficiente”, ressalta o diretor.

O movimento também defende a necessidade de investimentos em infraestrutura e políticas públicas de longo prazo. “É importante criar soluções e caminhos para a região que façam sentido e atendam a diversidade de cenários amazônicos, considerando-se o diálogo entre ciência e saberes tradicionais como caminho fundamental. Precisamos investir não só em infraestrutura, mas também em formação técnica intercultural, que une a ciência aos saberes da floresta. E, claro, é fundamental apoiar as iniciativas que já estão dando certo, como cooperativas e projetos comunitários que colaboram para a conservação da sociobiodiversidade”, conclui Saraceni.
A moda como impulsionadora da Economia Circular

Os princípios da economia circular também estão presentes na indústria produtiva da moda. Marcas e consumidores são convidados a repensarem suas práticas. Neste contexto ganham destaque brechós e iniciativas que promovam uma relação mais sustentável com esta cadeia. Um exemplo é o trabalho realizado pelo Centro de Tecnologia Têxtil e de Confecção da Amazônia, conhecido como Polo de Moda do SENAI em Belém. Criado em 2012, o projeto impulsiona a inovação e o desenvolvimento da indústria de moda, têxtil e confecção na região, e já capacitou mais de dois mil alunos nas áreas de costura industrial, modelagem, acabamento e produção de vestuário.
Durante os cursos, os alunos são orientados sobre técnicas sustentáveis na indústria. O centro ainda realiza coleta de resíduos têxteis oriundos das indústrias da região e os utiliza como matéria-prima em projetos desenvolvidos em sala de aula, possibilitando aos alunos a prática de conceitos de reaproveitamento e inovação sustentável. “O Centro promove o reaproveitamento de resíduos têxteis, a implementação de processos de produção mais limpos, o incentivo à logística reversa e a aplicação dos princípios da economia circular na cadeia produtiva da moda. Dessa forma, o impacto vai além da geração de emprego, impulsionando também a transformação para uma indústria mais consciente e responsável”, explica a gerente do Polo de Tecnologia Têxtil e de Confecção do SENAI Pará, Clarisse Chagas.

Todo o trabalho do Polo utiliza a metodologia SENAI de ensino. As aulas também promovem conteúdos conectados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. “Estimulamos a aprendizagem dessas práticas sustentáveis, formando profissionais conscientes do seu papel na transformação da indústria do vestuário. Dessa forma, o Centro atua diretamente na promoção de uma cadeia produtiva mais sustentável e inovadora, alinhada às exigências de mercado e às necessidades ambientais da Amazônia”, conclui a gerente.
A economia circular também já é a realidade de indústrias de confecção como a MLX Uniformes, localizada em Ananindeua, região Metropolitana de Belém. A empresa faz parcerias com cooperativas para reutilização, reaproveita resíduos têxteis e transforma sobras da produção em outros produtos. Para Priscilla Vieira, empresária da MLX Uniformes e diretora da FIEPA, a economia circular é mais que uma tendência. “É uma responsabilidade que a indústria local já começou a assumir e que precisa ser ampliada com urgência e visão estratégica. Em Belém e em todo o estado, temos um potencial enorme para alinhar a produção têxtil com práticas sustentáveis, valorizando a matéria-prima, reduzindo desperdícios e ressignificando o conceito de descarte”, explica.

Para a empresária, além de reduzir o impacto ambiental, a economia circular também gera novas oportunidades de negócios, renda e inovação. “Estamos em um cenário de crescente conscientização por parte dos consumidores e investidores. Acredito que a indústria paraense pode e deve ser referência nacional nesse movimento. E o primeiro passo é simples: olhar para os resíduos não como fim, mas como recomeço. Unir sustentabilidade com geração de valor é, hoje, um diferencial competitivo e em breve, será um pré-requisito para existir”, ressalta.
Economia circular é um dos pilares da Jornada COP+
A economia circular tem ganhado um papel de destaque nas discussões sobre sustentabilidade na Amazônia, e se consolidou como um dos eixos centrais da Jornada COP+, iniciativa liderada pela Federação das Indústrias do Estado do Pará (FIEPA). Segundo Elen Néris, Master em ESG e gestora executiva da Jornada, não é possível pensar em sustentabilidade industrial na região sem adotar essa abordagem, que propõe a redução do desperdício e o reaproveitamento contínuo de recursos. “Embora já tenhamos alguns cases importantes na região, como nas indústrias da mineração, do cimento e da moda, ainda é preciso avançar para que os empreendimentos industriais pensem desde o início com o pensamento circular”, afirma.
Na perspectiva da Jornada sobre a Economia Circular, este modelo vai além da gestão de resíduos. Começa na escolha de matérias-primas, design do produto, mas também na forma como as empresas se relacionam sobre o tema com seus empregados, fornecedores e sociedade. Entre os principais benefícios estão a eficiência na gestão de recursos, o fortalecimento da imagem institucional junto aos stakeholders e a contribuição direta para a redução das emissões de Gases de Efeito Estufa [GEE]. “Trata-se de uma forma concreta de alinhar a produção industrial às metas globais e nacionais de sustentabilidade, demonstrando que é possível crescer com responsabilidade ambiental”, reforça Elen.
A Jornada COP+ tem articulado diversas parcerias e iniciativas para fomentar a economia circular no estado. Através do diálogo com universidades, ONGs, indústrias e outros setores relevantes, ficou evidente que essa é uma preocupação coletiva. Por isso, o tema foi integrado como um dos cinco eixos principais da Jornada. As ações incluem cursos, workshops e atividades de letramento, além do apoio a projetos desenvolvidos por outras instituições com foco na circularidade.
Para estruturar essa frente, foi criado um comitê específico dentro da Jornada COP+, com participação de membros do Conselho Curador com expertise no tema. A proposta é construir uma agenda prática que responda às demandas do mercado, da indústria e da sociedade em geral. Segundo Elen, esse será um dos principais legados da iniciativa que, como o nome indica, vai além da realização da COP 30 em Belém. “Esse ‘mais’ é simbólico. A Jornada COP+ continuará após o evento, com ações concretas conduzidas pelos comitês de trabalho, em busca de um desenvolvimento justo e sustentável para a Amazônia”, conclui.